sábado, 23 de abril de 2011

Páscoa em Contige

A aldeia de Contige, no concelho de Sátão, resiste como um reduto da memória colectiva onde se tentam preservar costumes e tradições. A solenidade da Páscoa, aqui, é celebrada ainda com laivos de intemporalidade. É desses saudáveis aromas primaveris que gostaria de inundar o amável leitor. Na semana que antecede a Santa Ressurreição do Filho do Criador, Contige é toda cheia de cheiros e fumos estonteantes. Começamos no Domingo de Ramos onde os paroquianos se deslocam à vila, sede de paróquia, para enfeitarem com frondosos ramos verdejantes, de laranjeira, oliveira, mas, principalmente, de loureiro, para anunciarem a chegada da primavera e, depois de benzidos pelo pároco, terem as mais diversas utilidades na casinha de cada devoto. As doceiras de mão cheia – e há pelo menos uma em cada família – andam numa azáfama só pois entre as lides do dia-a-dia, ainda têm de arranjar tempo para separar os melhores ovos que guardam há semanas, trazer à luz do dia as formas, colheres, assadeiras, tabuleiros e outras alfaias culinárias úteis para as doçarias da época. Os homens separam a melhor esgalha, vides e a melhor lenha para darem vida aos fornos mais ou menos comunitários e aos domésticos porque, uns e outros, não têm descanso por essa altura. A criançada, em férias escolares, entre internet e playstation, sim porque os tempos são outros, ainda besuntam os informáticos dedos nos alguidares da massa dos biscoitos, dos pães de ló, dos bolos de azeite, enfim, de toda uma panóplia de doçarias que hão-de anaifar a mesa da Páscoa, coberta pela melhor toalha de renda. Nem imagina o paciente leitor como é bom uma fatia de bolo de azeite com queijo da serra que se vê do alto de Contige. Na verdade o bolo de azeite é rei e único por estas paragens. Mistura-se uma paleta de sabores com o doce e o salgado a rivalizarem nas papilas gustativas e o indispensável fio de azeite que se acrescentou à massa a amaciar a contenda. O bolo de azeite merece este destaque. Sai do forno amarelinho, fruto da escolha dos melhores ovos caseiros, e é oferecido a todas as casas da família. Mas há mais, ó se há. Que saudades de ir de saco de serapilheira debaixo do braço, ou empurrar o velho carro de mão do avô, chiando os seus rodados ferrugentos a competirem com a chilriadeira da passarada, a caminho do Vale de Coucão, a cata de aromáticos rosmaninhos que arrancava furiosamente das teimosas pedras que não queriam perder o seu perfume. De volta ao povoado, com os sacos e a carreta atestados, guardavam-se as fragrâncias naturais para, no dia de todas as Aleluias, se fazerem ordenados carreiros por onde haveria de passar a Santa Cruz, nos braços de um dos mordomos do Senhor. Nessa semana dispensavam-se os trabalhadores da câmara, da junta, os cantoneiros, porque cada família puxava o lustre ao seu bocadinho de rua. Contige parece ter sido varrida pelo sopro de Deus pois nem um papel, uma ervinha ou outra coisa qualquer podiam rivalizar com os impecáveis carreiros de rosmaninhos que ligavam todos os vizinhos que, pelo menos nesse dia santo, esqueciam as rixas motivadas pela partilha da água ou por causa de um teimoso marco que insistia em se colocar uns passos para o lado. Eis-nos chegados ao dia por que tantas almas ansiavam. De sábado para domingo, Contige dorme às pressas. Entre as cerimónias da Missa de Aleluia que, na matriz, acaba noite escura e o acender dos fogões e o animar dos fornos passam dois rápidos pares de hora onde a ansiedade embala o sono. A senhora da casa dá gáspea ao velho fogão de lenha ou de gás onde afreventa uma canjinha e coze uns nacos de porco de várias proveniências do corpo do animal, entenda-se. Presunto, chispe, barriga, focinheira e uns enchidos, hão-de estar prontos para a família comer às pressas enquanto o senhor prior chega à próxima casa. O patrão já arrancou a chegar lume ao forno para tostar um leitão de criação caseira – por lá este bicho é rei e senhor – mas ainda arranja um espaço no canto do braseiro para um franguito caseiro e uma assadeira de batatas. Oito da manhã. O foguetório dá sinal de partida. Quatro cruzes partem da vila rumo às quatro partidas da paróquia. A nossa chega ao alto do Pereiro meia hora depois da partida e às nove está à sombra do velho e majestoso eucalipto se São Pedro fizer o favor de correr as cortinas do céu para nos brindar com uns raios de sol. O povo já está na rua para receber o Senhor. E que aprumados estão todos: briais novos, cabelos arranjados e perfumados. Parece ter havido magia. Ainda há pouco se acotovelavam nos preparativos e já estão todos aperaltados. É assim a vontade humana. Durante toda a manhã, já se sabe, de casa em casa, beijando o Ressuscitado Senhor Jesus Cristo que é recebido com sorrisos e cânticos, muitos cânticos que ecoam pelas ruas, ao desafio: “Aleluia, ressuscitou, aleluia ... veio para nos salvar, aleluia." Lá pelas dez e meia alguns homens e jovens da aldeia juntam-se no café mais antigo do lugar para repousar o farto e prolongado pequeno-almoço ingerido às prestações marcadas pelo ritmo da Cruz, com uns cálices de vinho do Porto. Um dos homens da roda saca, da algibeira, um papel rabiscado onde rezam os nomes dos pagantes desse ano e onde se anotam os do ano seguinte. Enfim, coisas da tradição. Estimado e paciente leitor, se conseguiu resistir ao tédio e está a ler estas últimas linhas, fica o convite para vir viver esta Páscoa tão especial e emotiva. Não se esqueça de trazer muito apetite pois vai ter que comer e beber em cada casa onde entrar, sob pena de ofender os donos, se não o fizer e de rechear a carteira com uma notita extra se tiver por cá um afilhado pois a meninada, entre umas amêndoas e umas correrias há-de arranjar tempo para reconhecer os padrinhos e lhe pedir a Bênção.

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